24 junho, 2011

Trago

Não gostava, mas decidiu sentar-se ao sol. Afastou a grande bolsa para o lado, cruzou as pernas desajeitadas. Tomou o pequeno isqueiro vermelho entre os dedos, domou-o. Ajeitou o cigarro entre os lábios pintados e, com um fogo tímido, acendeu a ponta. A tragada forte inundou-lhe o espírito de fumaça e ocultou-lhe o frio, por um instante. Tomou um gole do chá – já estava morno. Viu sua sombra à frente, o cabelo pareceu-lhe bonito. Baixou os olhos e viu, no fundo do copo plástico, os dedos que o seguravam; dedos cor de mate, “uma cor bonita pra se ter”, pensou. O chá estava no fim. A fumaça do cigarro voava esparsa no vento e circundava-lhe o pescoço, como um bonito cachecol de vazio e monóxido de carbono. Respirou fundo. Deu um trago.

Olhou para frente; viu uma obra, alguns prédios, viu pessoas ao sol, viu o céu azul e limpo. Viu que sua realidade não se comovia com suas acepções sobre o mundo, viu que sua existência era um nada consumado, viu que seus desejos eram incompletos e inconstantes. Viu-se desmerecida do que tinha, viu-se sozinha sob o sol. O vento soprou-lhe as costas, a blusa de lã não ofereceu qualquer resistência contra o frio. O corpo estava frio, os pés estavam frios, as mãos estavam frias. O coração frio como se não houvesse amor, o pensamento frio como se não houvesse fantasia. A alma fria de quem não conheceu a satisfação se ser. O chá frio. Protelou o último gole e deu um trago.

No céu, andorinhas desavisadas buscavam o verão. Pensou na tolice maniqueísta de suas justificativas para o fracasso. Pensou no frio. Fechou os olhos e tentou lembrar-se de uma tarde quente, mas nenhuma lembrança calorosa fez sentido. Lembrou-se então das dúvidas que tinha no peito, vastas como um campo aberto, enquanto flores de esperança brotavam-lhe na garganta. Respirou a brisa que vinha de dentro, cheirava a angústia de abismo. Um arrepio vindo do precipício estremeceu-lhe a espinha, o cigarro ameaçou cair. Sentiu medo. Não sentiu mais nada. O pensamento se refez em aurora rósea, sem luz ou sombra que tocasse o chão. Abriu os olhos. Deu o último gole no chá gelado. E deu um trago.


Post escrito em homenagem às 10.000 visitas do Ode à Vida.

17 maio, 2011

~

Aquele traço marcado...
                                  o que é?

Foi um risco que se perdeu da tinta.
Foi o corpo que faleceu no ar.
Foi o vazio de ver tudo círculo
               e não poder discutir a forma.
Foi o resto perdido no branco.

Aquela marca azul,
                                  o que é?

É uma linha entre o campo e o céu,
                           o céu e o mar.
É uma mancha no mar.

Tudo cabe dizer e tudo pode ser dito:
que é esboço, linha, lance, sinal, vestígio.
Que é rastro.
É um erro sobre o texto,
um pedaço de mágoa no inteiro,
imperceptível,
                     pequeno e mudo,
cômodo, triste.

Sem argumento.
Apoético.

13 maio, 2011

Ultrapasso

Não estão no caminho feito
os passos dados.
Não há vestígio dos pés, daquilo que foram.

O conforto está em esquecer o caminho, em não mais provar o desgosto da areia fina entre os dedos. Porque isso já foi.

Os passos adiantes são sempre como o primeiro e não hão de sofrer o desastre o peso a miséria e angústia de proceder os passos que já foram.

Começar e prosseguir; e o progresso, o próximo passo, é também o primeiro.

Passado, os passos se foram.
Foram, não mais outros serão.
Serão, mas não mais os mesmos.