30 maio, 2010

Faminta

Ando faminta,
garfando o peito vazio.
Meu coração não é senão uma tigela rasa
e todo amor que nele estava
eu já comi.

Eu já comi e estou faminta.

Vago, dolorida,
mendigando o peito alheio.
Passo com os olhos carentes
e quem me vê sente um pena desgraçada da minha desgraça.

Já me foram todas as tripas e vísceras.
Nada de amor me resta.

Meu estômago fundo: não tem feijão.
Minha cabeça afunda: está vazia.
O meu peito aberto: solidão.
Sofrimento, ao menos, p'ra poesia.

26 maio, 2010

Eis-me aqui

Por conta d'água que me trouxe e fez de mim sonoro passo;
por conta d'ele que me amou mais agora do que antes;
por tanta conta feita e abraço dado sem tamanho;
por tanto aperto bobo e, agora, dia livre;

É por tanto tempo juntos sem estarmos de mãos dadas
e porque agora entendo de onde surgiu esse amor;
por cada dia triste e alegre que virá, que seja;
por ter, agora, o que celebrar no peito:

Eis-me aqui em repleta paz por existir, mas não apenas!
Eis-me assim pelo que sou nos olhos outros,
pela aura brilhante com a qual me sinto,
por poder o que quer que seja. E será.

Por tanto ensaio do que já é feito, por tanto medo de fazer;
por tanto engano e, agora, acerto; por entender;
porque sei agora de onde vêm as culpas:
Eis-me aqui pronta, plena e feliz.

16 maio, 2010

Ao poeta

Divagar, poeta? - Despautério! Não é possível fugir da insanidade. Tudo o que nos preenche - assim como o que nos esvazia - há de apagar-se.

Só não sei dizer das ilusões. Acreditava, ontem, no que não existe, hoje. E já não sei se, de fato, deixou de existir ou se, simplesmente, jamais foi - mas como sabê-lo, poeta? E toda a culpa por ser mercadoria não se dissipa, porque, ao contrário, edificou-se. É, agora, como um membro que eu carrego e, às vezes, até aprecio.

Tu falaste da fome de ser. E eu tenho fome de ser o mais desejável dos seres. Mas estando longe de qualquer apreciação, eu tenho fome de ser o mais repugnante indivíduo, e que meus olhos não sejam mais vistos, que minha pele não seja tocada, que eu não seja aceita em lugar qualquer e que sequer, no mundo, saibam meu nome.

Sendo fácil, poeta, eu morreria. Banalmente, deixaria-me ser levada ao desastre, para que, aos que ficassem, não restasse muita dor ou muita justificativa. Mas o que impele o indivíduo a agir é a possibilidade de arrepender-se descaradamente. E na morte, creio eu, não há como arrepender-se. E sei que meu instável coração não deseja meu fim, tão logo.

Por que, então, poeta, esta gula? Por que esse desejo de explicar-se compulsivamente, descortinar o outro e agregá-lo ao peito? Por que querer amar amar amar? Ignoro.

Pensemos na vida, poeta. Desgraçado fardo ao qual nos apegamos sem limite, e para o qual criamos regras e valores tão absurdos quanto o próprio acidente trágico que é a vida - miséria esta pior que a morte. Não, poeta, eu não vou encerrar minha vida nesta carta. Para matar-me, se o fizesse, não haveria qualquer palavra. Eu guardaria meu último suspiro num silêncio. Não é o caso.

O que invade-me é a recusa de aceitar a vida. Mas veja a demência do que digo: que ironia, poeta, rebelar-me contra o que me mantêm em movimento para rebelar-me! Sequer faz sentido!

Parece-me, poeta, que sou exilada da vida da vida e a enxergo como o vento, sem lugar. Sem encontro.

Eu chamaria o que sinto de melancolia. Tão vazia me sinto que qualquer olhar encanta-me, qualquer elogio seduz. E onde estão, poeta, meus sentimentos? E onde ficam os teus, meu poeta? Onde está o juiz que condenou-me a julgar? E qual carrasco fez de mim tão irracional? E quem tem culpa, poeta, se sou eu o juiz e o carrasco, quem condena e quem executa a pena?

Poeta, eu estou cansada. Cansada de distribuir amor como quem doa roupas velhas ao necessitado, mas também ao burguês preguiçoso. Não recebo nada do que distribuo, mas há aí outra incoerência: Se tanto desejo amor, porque dou todo o que tenho?

Disseram-me, poeta, que preciso de mais amigos. Mas não é disso que preciso, jamais os tive. Eu não sei, em mim, ser amiga; só sei ser amor. E por isso amo tanto e tanto, insanamente, sem medo e sem pudor. Amo de várias formas, mas todas são, eu garanto, amor. Mas, dessa inconsequência ,eu carrego, quase que de imediato, uma dor. Sou fadada a esquecer, porque as pessoas passam, fugazes, deixando em mim um reflexo do que eu sinto, não do que são.

Encerro, poeta, desculpando-me pelo desconforto de ler-me desconexa e amargurada, mas sei que teu bom coração há de querer-me bem, mesmo quando do fim desta carta. Grata por ter chegado até aqui, eu e você.

12 maio, 2010

Para que você entenda o que eu quis dizer

A quem merece mais da vida do que o que tem recebido até agora.

Não é bem aqui que eu queria estar. Eu queria estar aí, com você. Sei que te faço bem, sei que te faço rir, eu entendo seus problemas e te valorizo como ninguém jamais fez. Estranhamente, você parece querer algo que eu não tenho ou jamais terei, não importa o quanto eu me esforce. E, gentilmente, você diz que o problema está em você e não em mim.

Das maneiras mais gentis que eu conheço, procuro mostrar o quanto me importo com sua felicidade, para que nada comprometa o que nós já construímos, e não se chama amor. No entanto, eu me sinto infeliz e frustrada. Nada mais me vem à cabeça que não seja você. E eu queria tanto, tanto, dizer isso sem me sentir uma idiota depois, mas é inevitável. Eu só vejo seu rosto, só sinto sua pele, só espero por você.

Outras tantas coisas acontecem no meu mundo, mas nenhuma delas faz tanto sentido. A elas, distribuo valores aleatoriamente, como forma de desvincular minha cabeça do meu pensamento mais constante. Eu tento detestar o que você diz, às vezes. Tento te achar esnobe, frívolo e demente. Tento me desviar quando dói muito. Mais demente pareço ser eu, porém, que sinto mais dor ao me afastar de você do que vê-lo massacrar o que sinto sem a menor intenção.

Eu não sei o que fazer. Tornei-me egoísta com o mundo porque meu desejo e minha insatisfação ultrapassam meu controle sobre mim. Sou arrogante, dispersa, mas, sobretudo, apaixonada, doente. Mantenho um sorriso amarelo, conservo meu mau-humor naturalmente bem-humorado, mas dentro eu estou destruída. Eu, que já estive em chamas, hoje estou em cinzas.

Você mudou diante dos meus olhos. E, apesar de todos os defeitos que eu tentei lhe atribuir - alguns de maneira bem justa -, é você quem eu ainda quero e hei de querer por sei lá mais quanto tempo. Eu digo, às vezes, que queria esquecê-lo para poder dedicar-me a quem me adora. Mas a verdade é que eu quero que você entenda que eu posso lhe dar tudo o que você quiser, e quanto mais você desejar. Afogo em lágrimas, porque sou completamente sua e porque você só é meu dentro de mim.

11 maio, 2010

Subtil cécité

Quando os olhos se abrem, vêem laços. Vêem cerdas que são minhas e do travesseiro. Meus pulmões sobreviverão, embora haja tanta fumaça. Meu coração, no entanto, há de apagar-se; meu lumiar se encerrará. Há tanto para ver, mas meus olhos míopes alcançam apenas a distância do palmo à frente, nada mais. Por isso o chamo de 'meu mundo', 'meu futuro', 'meu mundo', porque é tudo que seu olhar profundo me mostra. E o infinito é tudo que posso ver.

Sobre homens

Engana-se aquele que pensa que ser pássaro basta:
são hoje os homens mais impressionados com poodles.

São pássaros, pragas
medonhas e bárbaras
que batizam a cabeça alheia
com o sumo infame da terra.

São poodles bocados de nuvens
que saltam, treinados, qualquer porção de coisa.
Seus restos fecais são bombons, vejam só!
Isso, talvez, explique o hábito que os cães tem de cheirar os cus, uns dos outros.


Mas não queira ser pássaro, devaneio certo!
Voar não é para o homem.
Este, coitado
- antes fosse poodle -,
só nasceu p'ra tropeçar e cair.

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d'aqui.

06 maio, 2010

Madalena

Simplesmente linda. Quando colore-se, irradia tal qual um cristal atravessado pela luz. Uma beleza simples toma seu rosto e percorre seu corpo tão naturalmente que nela não se encontram traços de estranheza. Defeitos minuciosos, visíveis e calculadamente distribuídos lhe dão uma imagem tão bela quanto doce, uma perfeição em suas imperfeições.

Ela, no entanto, não aceita estar onde está: Madalena não admite a sucessão de caminhos que a vida lhe impôs e o tom injusto com o qual cada amor lhe é apresentado e, em seguida, retirado. Expõe-se, vergonhosamente, quando assemelha-se demais aos demais. Todos sabem, como ela, que distanciar-se da humanidade é uma maneira de analisá-la criticamente, para depois reconhecer-se.

Sua lágrima é constante e desesperada. Quem a vê em prantos atesta a teimosia de Madalena em aceitar sua dor, enquanto a face contrai-se de ódio do fatídico rio que lhe corre a face e cora as bochechas. Relutante, respira fundo, ameaça-se inconscientemente e sorri. Uma dor qualquer não faz sentido algum.

Madalena decreta o fracasso sem que antes haja tentativa. É uma forma de eximir-se do sofrimento antes que ele venha e lhe tire o sono pela noite. Então sonha com o que não houve e com o que não haverá, sendo ela tão digna de ser aquilo que quiser.
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d'aqui.

Sobre a brisa, o que eu digo

Acordou à beira mar - já era dia!
Era a brisa aliviando a areia quente.
Qual sonho era este que ora vivia?
E que peça lhe pregara sua mente?



Sobre a brisa, o que eu digo é que ela foi
e o vento nem mais veio beijar-me.
Foi na brisa minha inconstante paz
e eu sinto falta agora, mais que tudo.

Dois pedaços de fundo de rio.
Duas poças de lama barrenta.
Dois olhos castanhos, cor de terra.
Duas janelas com vista para a montanha.

Sobre a brisa, o que eu digo faz sentido:
ela é minha. Ela vai, mas sempre volta.
Haverá um dia em que eu irei distante
e não mais terei olhos de esperança.

Duas superfícies claras de rio doce.
Duas esmeraldas cravejadas em pele.
Dois olhos verdes, cor de botão de lírio.
Duas janelas com vista para o céu.

Ainda sobre a brisa, não mais importa:
agora ventam em mim outros ventos.
Mas está em mim jamais ter asas
e só voar em pensamento, sozinha.